Arquiteta paisagista Mariana Siqueira: Jardins de Cerrado e documentário Jardim Piloto
Autor: Regina Motta - Data: 23/04/2020
É com grande prazer que a nossa Revista Aue Paisagismo retorna ao contato com a arquiteta e paisagista Mariana Siqueira que já nos presenteou, em 2016, com uma entrevista que ela fez: Amalia Robredo, paisagista da Argentina: Amor pelas plantas nativas.
Vamos saber mais sobre o que tem sido feito em relação à valorização das plantas do Cerrado, com o projeto Jardins de Cerrado e o documentário Jardim Piloto.
Que bom que ela se dispôs a nos atender!
AuePaisagismo: Conte-nos um pouco sobre você.
Sou uma mineira que, depois de morar em muitos lugares, escolheu o Planalto Central para viver e trabalhar. Depois de deixar Belo Horizonte aos 17 anos, estudei arquitetura e urbanismo em São Paulo (FAU USP), trabalhei como arquiteta voluntária na Índia Rural (Fundación Vicente Ferrer) e como arquiteta paisagista no escritório holandês West 8 Urban Design and Landscape Architecure. De volta ao Brasil, trabalhei em projetos da Rosa Kliass e fui repórter para a revista AU (Arquitetura e Urbanismo). Por fim, me mudei para Brasília em 2014. E foi ao me embrenhar no Cerrado que vi um sentido mais profundo na minha atuação profissional. Hoje tenho escritório de paisagismo em Brasília e trabalho também na Chapada dos Veadeiros.
A arquiteta e paisagista Mariana Siqueira em expedição em busca de plantas com potencial ornamental na Chapada dos Veadeiros – GO. (Foto: Amalia Robredo)
AuePaisagismo: Por que a escolha desta área de estudo e trabalho, o Paisagismo, tão importante para o nosso planeta?
Sempre tive vontade de encontrar um trabalho que me permitisse devolver para a natureza e para a sociedade o muito que recebi da vida. Nasci em uma família carinhosa, tive acesso a saúde, educação e lazer, e me formei em uma universidade pública. Vendo que as ações humanas estão nos empurrando para a beira do abismo – não só nossa espécie, mas muitas outras que já estavam aqui antes de surgirmos no planeta – queria trabalhar para ampliar a sensibilidade das pessoas em relação à natureza. Nesse sentido, o paisagismo oferece ferramentas potentes, pois atua nas pontes entre o artificial e o natural, o cultural e o biológico.
A paisagista Amalia Robredo avalia uma planta nativa do Cerrado com potencial ornamental, em sápida de campo na Chapada dos Veadeiros-GO, 2017
Viveiro experimental Jardins de Cerrado, com plantas cultivadas sob os cuidados de Claudomiro de Almeida Cortes. Chapada dos Veadeiros-GO, 2017
AuePaisagismo: O Cerrado tem uma grande relevância em seus estudos, não é? Quais os motivos que a levaram a se especializar na vegetação do Cerrado?
Trabalhar com o Cerrado abriu possibilidades muito interessantes na minha vida profissional e mesmo pessoal. Ao começar a trabalhar em Brasília, me espantei ao descobrir que, ao buscar por plantas nativas da região para especificar em meus projetos de paisagismo, encontrava apenas árvores – tanto nos viveiros quanto em jardins consolidados. No entanto, sabemos que o Cerrado é muito mais que apenas árvores: suas paisagens são caracterizadas por amplas extensões com plantas mais baixas, sobretudo capins, com ervas e arbustos entremeados (1). Por frequentemente apresentar árvores espalhadas sobre esse tapete vegetal, o Cerrado é considerado uma savana. Descobrir que temos no Brasil a savana mais rica em biodiversidade do planeta foi uma revelação para mim, e me levou a superar a visão errônea de que somos basicamente um país de florestas e praias. Somos, sim, um país de campos e savanas também! Dessa descoberta decorre todo o meu trabalho atual: revelar, através dos jardins, as qualidades estéticas e ecológicas das paisagens abertas brasileiras (os chamados ecossistemas não-florestais), para contribuir com sua valorização cultural, essencial para a conservação de sua biodiversidade.
AuePaisagismo: Qual o dia-a-dia do seu trabalho com o Cerrado? Pode nos apresentar alguns de seus projetos?
Desde 2015, desenvolvemos variadas atividades projetuais, científicas e pedagógicas junto a valiosos parceiros* através do projeto Jardins de Cerrado. Fazemos expedições em busca de plantas com potencial paisagístico; testamos o cultivo de plantas nativas e fazemos experimento científicos e de jardinagem, utilizando tanto mudas e quanto semeadura direta. Gosto muito de trabalhar também com a divulgação desses conceitos e esforços na forma de grupos de estudos, publicações, cursos e palestras. Desde o começo, busco embasamento técnico e compositivo nos chamados jardins naturalistas, uma vertente do paisagismo contemporâneo que oferece abordagens bastante promissoras para a criação de linguagens que expressem os campos e savanas do Cerrado.
Jardim de Cerrado experimental na Casa Vila Rica (projeto arquitetônico Bloco Arquitetos). Autoras: Mariana Siqueira e Amalia Robredo. Brasília-DF, 2019.(Foto Ilka Teodoro)
Entre os jardins de Cerrado experimentais que fiz até agora em residências, gostaria de destacar o da Casa Vila Rica (Brasília-DF, feito coma colaboração de Amalia Robredo, e o da Casa no Cerrado (Moeda-MG. Na UnB, fizemos, com parceiros**, o Jardim Louise Ribeiro em memória à aluna vítima de feminicídio – esse é o mais extenso jardim de Cerrado feito até agora. Gostaria de destacar também o Jardim Piloto***, um documentário longa-metragem (Roman Filmes) que acompanha a criação do primeiro jardim de Cerrado feito em uma das muitas rotatórias de Brasília.
Experimento ‘Manejo de ervas e subarbustos do Cerrado para uso paisagístico’, realizado na UnB sob a coordenação do professor Júlio Pastore. Brasília-DF, 2018.
* O projeto Jardins de Cerrado desenvolve atividades em parceria com (em ordem alfabética): Associação Cerrado de Pé (Claudomiro de Almeida Cortes), Coletivo Cerrado no Jardim, Estudio Amalia Robredo, Governo do Distrito Federal, Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, Rede de Sementes do Cerrado Universidade de Brasília (Instituto de Ciências Biológicas, Laboratório de Paisagismo – FAV, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo), VerdeNovo Sementes Nativas.
Jardim Louise Ribeiro, Instituto de Ciências Biológicas, UnB. Brasília-DF, 2019.
** O Jardim Louise Ribeiro foi feito por: IB UnB, Prefeitura do Campus da UnB, FAU UnB, Coletivo Ipê Rosa, Jardins de Cerrado (arq. Mariana Siqueira)
*** O Jardim Piloto é uma iniciativa de: Roman Filmes, Jardins de Cerrado, UnB (Laboratório de Paisagismo – FAV, Rede de Sementes do Cerrado, Estúdio Amalia Robredo, Ibram (Instituto Brasília Ambiental), Administração do Plano Piloto, Governo do Distrito Federal.
AuePaisagismo: Existe uma tendência mundial para o uso de plantas locais em detrimento das plantas exóticas? Quais seriam as vantagens dessas escolhas?
Existe sim uma tendência mundial de valorização das plantas nativas, que tendem a estar mais bem adaptadas às condições de clima e solos de um lugar, além de poderem dar origem a composições singulares que valorizam as paisagens locais. Isso pode ser entendido como uma reação à homogeneização cultural – e, em boa medida, biológica – que resulta do processo de globalização. Não se defende, no entanto, que não devam ser empregadas plantas exóticas no paisagismo: elas são bem vindas. O importante, nesse caso, é observar se as espécies escolhidas apresentam risco de se tornarem invasoras. Invasões biológicas são a segunda principal causa de perda de biodiversidade no mundo, e o paisagismo é o principal vetor de dispersão de espécies de plantas invasoras! Desse modo, nosso trabalho vai muito além da estética. Temos uma grande responsabilidade em mãos, e devemos usar nosso campo de atuação como uma forma de educar a sociedade para conceitos de ecologia que por vezes passam longe do público em geral.
AuePaisagismo: Este interesse nas plantas nativas do cerrado já é demonstrado por outros profissionais da área, não é? Quer nos relatar sobre os envolvidos nesta tendência?
Sim, é crescente o interesse por criar jardins com plantas nativas do Cerrado – não só com suas árvores, mas com plantas de outros hábitos também. Recentemente, a paisagista Soraia Silva de Mello desenvolveu o trabalho “A flora ornamental do Cerrado no paisagismo: retrato da aplicação prática” (ver link abaixo), onde são elencados alguns dos principais atores e iniciativas deste movimento. De sua lista, destaco o trabalho do professor Júlio Pastore (FAV-UnB), do paisagista Sérgio Borges (Vertical Paisagismo, Brasília-DF) e da paisagista Kátia Matos (Nativa Paisagismo, Belo Horizonte-MG). Todos eles trabalham com prospecção de plantas nativas, cultivo e experimentação em jardins, além de serem entusiastas que ajudam a gerar interesse entre seus alunos e clientes.
Link para “A flora ornamental do Cerrado no paisagismo: retrato da aplicação prática”.
AuePaisagismo: Uma mensagem para nossos leitores, em sua maioria profissionais de área de paisagismo e irrigação.
O Brasil detém a maior biodiversidade do planeta: essa é nossa verdadeira riqueza. Com a crescente urbanização e com a globalização, essa riqueza pode cair cada vez mais no esquecimento e no desconhecimento. Nós só cuidamos daquilo que conhecemos, por isso nossa profissão é muito potente: podemos fazer jardins para apresentar a biodiversidade de nossas regiões para o público em geral, ajudando a criar laços afetivos com as paisagens onde as plantas ocorrem naturalmente.
Junto à potência dos jardins vêm grandes responsabilidades. O paisagista deve estar atento para, por exemplo, não introduzir espécies invasoras ou para não desperdiçar o importantíssimo recurso que é a água. Os jardins com plantas nativas do Cerrado tendem usar plantas naturalmente adaptadas à seca, que devem demandar, dos projetos que tiverem essa possibilidade, sistemas de irrigação mais sofisticados, econômicos no uso da água e ricos em projeto e tecnologia.
Plantas – Plantas nativas do Cerrado empregadas em jardins experimentais
Mutirão de plantio da primeira rotatória totalmente nativa de Brasília-DF, 2020. (Foto: Cleber Martins)
Plantas do Cerrado - fotos de Mariana Siqueira
Chresta exsucca
Trichogonia prancei
Seriema em meio à vegetação do Cerrado, com predominância de capins, ervas e arbustos. Parque dos Pirineus-GO, 2018.
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