Especialista em paisagismo sustentável Soraia Silva de Mello e a flora ornamental do Cerrado
Autor: Regina Motta - Data: 31/03/2020
Nossa Revista AuePaisagismo apresenta aos nossos leitores a especialista em paisagismo sustentável Soraia Silva de Mello e seu valioso trabalho sobre a flora ornamental do Cerrado no paisagismo. É com grande prazer e, porque não dizer, de orgulho, dar a conhecer esta profissional que busca estudar e divulgar a nossa riqueza vegetal do cerrado!
Faculdade JK Escola de Paisagismo de Brasília Curso de Pós-graduação Lato Sensu em Paisagismo A FLORA ORNAMENTAL DO CERRADO NO PAISAGISMO: Retrato da aplicação prática Soraia Silva de Mello. Trabalho apresentado ao Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Paisagismo, da Escola de Paisagismo de Brasília/ Faculdade JK, como requisito para obtenção do título de Especialista em Paisagismo Sustentável.
AuePaisagismo: Conte-nos um pouco sobre você, por que a escolha desta área de estudo e trabalho, o Paisagismo, tão importante para o nosso planeta.
A sustentabilidade socioambiental sempre foi o fio condutor em todos os âmbitos da minha vida. Sou engenheira florestal (ESALQ/USP) e especialista em análise de uso e conservação de recursos naturais (UNICAMP).
A maior parte da minha carreira profissional foi dedicada ao desenvolvimento de políticas públicas de educação ambiental, ao desenho de processos de participação social e à sistematização de conhecimento coletivo.
Atuar profissionalmente como paisagista sempre foi um sonho, mas que estava adormecido. Há três anos, numa fase de intensa transformação pessoal, me deparei com uma palestra da arquiteta paisagista Mariana Siqueira sobre os Jardins do Cerrado, que defendia princípios que sempre considerei fundamentais no paisagismo. Foi o ponto de inflexão para mim: decidi que eu finalmente seria paisagista, sob o viés da sustentabilidade. Tive então a oportunidade de fazer parte da primeira turma de pós-graduação em Paisagismo Sustentável da Escola de Paisagismo de Brasília/Faculdade JK. Ao longo do curso resolvi aprofundar meus estudos sobre a fascinante flora do Cerrado no paisagismo, sob a orientação do prof. Júlio Pastore (disponível TCC Soraia Versão atualizada).
Acredito que o paisagismo é uma potente expressão artística que pode contribuir para a urgente e necessária reconexão da humanidade com a natureza. Ao trabalhar sob perspectiva da sustentabilidade, creio que o paisagismo pode contribuir com soluções para o enfrentamento da grave crise ecológica que estamos vivendo atualmente.
Crise ecológica
Além de prover as condições fundamentais para a permanência da nossa espécie no planeta e dos comprovados benefícios para nossa saúde física e mental, o meio ambiente merece nosso respeito pela sua existência em si.
Atualmente o planeta atravessa uma crise social, sanitária e ecológica sem precedentes, gerada por um sistema econômico que compreende o meio ambiente (e outros seres humanos) como objeto de dominação. Essa crise mostra que nosso descolamento da natureza é insano. Ao contrário, aos nos vermos como parte do meio ambiente, podemos encontrar respostas para um almejado mundo mais solidário, justo e harmonioso.
Os sistemas ecológicos nos mostram que o equilíbrio acontece de forma dinâmica e de diversas maneiras, que divergem das soluções padronizadas que tentamos aplicar em diferentes contextos. Vários povos originários, que vivem uma relação orgânica com a terra, mostram caminhos para sociedades sustentáveis, mas infelizmente são vistos como “sub-humanidades”, de acordo com Ailton Krenak em seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo”.
Paisagismo Sustentável
Constato que o paisagismo convencional, apesar de estar intrinsecamente relacionado ao meio ambiente, também reproduz uma visão de dominação da natureza, que acaba levando a ambientes artificiais e insustentáveis, que precisam de intensa manutenção. Muitas vezes os projetos desconsideram completamente o ecossistema original; mudam completamente as condições edáficas para tornar o local apto a receber espécies exóticas; trabalham com uma baixa diversidade de espécies; eventualmente demandam um intenso manejo com adubos, herbicidas e inseticidas químicos para contornar o desequilíbrio criado; e exigem uma quantidade exacerbada de água para a irrigação.
O paisagismo sustentável, por sua vez, adota como premissas soluções baseadas na natureza, que podem colaborar para a conservação da biodiversidade e dos ecossistemas. Essa vertente aceita e valoriza as condições originais do local, preconizando maior diversidade de espécies, especialmente as autóctones, adaptadas ao clima e ao solo da região, e a configuração de um ecossistema mais equilibrado, que prescinda de grandes intervenções para garantir o desenvolvimento das espécies. Além disso, busca incentivar a cadeia de produtores locais e um mercado mais justo e solidário.
Dentro desse conceito de paisagismo sustentável, defendo também a ampliação de oferta de áreas verdes em centros urbanos, especialmente em locais com mais vulnerabilidade social, sem acesso a a arborização, parques e jardins: paisagismo para e com todos!
Compreendo os espaços verdes como espaços educadores, pois podem ser meios de produção de conhecimento sobre o meio ambiente e de formação de cidadãos mais críticos, conscientes. Mas acho que a conexão com a natureza e sua ressignificação demandam aspectos subjetivos, além dos racionais. E aí que entra a arte, que envolve a nossa emoção, que desperta a generosidade, a compaixão e acende até mesmo um componente místico. Acredito que o paisagismo sustentável traz a possibilidade incrível de reunir aspectos objetivos e subjetivos que contribuem para levar a humanidade de volta à natureza. Quero aprofundar meus estudos e minha atuação profissional nesse sentido.
AuePaisagismo: O Cerrado tem uma grande relevância em seus estudos, não é? Como o Cerrado tem aparecido no Paisagismo? Quais os motivos que a levaram a se especializar na vegetação do Cerrado?
O Cerrado nos convoca. Não podemos recusar o seu chamado. Sou radicada em Brasília há 17 anos. Nesta cidade, tive, pela primeira vez, o sentimento de pertencimento. Sou absolutamente apaixonada pela rica flora do Cerrado, que, inacreditavelmente, ainda é pouco presente nos projetos de paisagismo. Na tentativa de compreender os motivos dessa situação, busquei aprofundar meus estudos sobre como as primeiras experiências de aplicação prática da flora ornamental do Cerrado no paisagismo.
Anemona paegna glaucum (catuaba)
AuePaisagismo: Existe uma tendência mundial para o uso de plantas locais em detrimento das plantas exóticas? Quais seriam as vantagens dessas escolhas?
Sim, essa tendência acontece há algumas décadas nos EUA e em países da Europa. Mais recentemente, o uso de plantas locais aparece vinculado à busca de soluções sustentáveis de adaptação à mudança no clima, especialmente a perspectiva do aumento de períodos de estiagem. Ao utilizar espécies que naturalmente ocorrem em um determinado habitat e bioma, colaboramos para a conservação da biodiversidade (flora e fauna) e para um ecossistema mais equilibrado, que prescinda de grandes intervenções e investimentos em termos de adubação, manejo de pragas e irrigação. Além disso, incentivamos o crescimento de um mercado mais justo e solidário formado por pequenos produtores locais, que passam a olhar para a biodiversidade como um grande ativo a ser valorizado e protegido e não um obstáculo. Ou seja, o uso de plantas nativas pode trazer benefícios ecológicos, sociais e econômicos.
No caso do Cerrado, as conclusões do meu estudo apontam que, apesar do seu potencial ornamental, o uso da flora nativa ainda é pouco presente em projetos paisagísticos no Brasil e incipiente no mercado comercial devido à carência de informações, pesquisas e investimento.
Banisteri opsis gardeneriana (cipó prata)
AuePaisagismo: Qual a influência da expansão agrícola na diversidade das plantas do cerrado? Há espécies já em extinção?
Infelizmente, a rica biodiversidade no Brasil não é tida como um grande ativo vantajoso comparado aos demais países. Ao contrário, é ignorada e considerada um obstáculo para o desenvolvimento das atividades industriais e agropecuárias convencionais. Essa visão acaba contribuindo para a devastação e, consequentemente, a perda da biodiversidade.
Como exemplo disso, um dos hotspots mundiais de biodiversidade (áreas consideradas prioritárias para a conservação em nível mundial), o Cerrado brasileiro, de acordo com dados do Ministério do Meio Ambiente, é o bioma que mais sofreu alterações nas três últimas décadas, especialmente em função da expansão agropecuária e da urbana. É estimado que cerca de 20% das espécies nativas e endêmicas já não ocorram em áreas protegidas e que pelo menos 137 espécies de animais que ocorrem neste bioma estão ameaçadas de extinção (segundo o Ministério do Meio Ambiente).
Um dado bastante enfatizado pelos paisagistas, ao longo do meu estudo, foi o impacto da alteração das condições originais do solo no uso de espécies da flora do Cerrado no paisagismo. A usual prática de calagem, adotada nas atividades agrícolas e de jardinagem, torna-se um obstáculo para o pleno desenvolvimento de espécies autóctones, adaptadas aos solos distróficos desse bioma.
Campomanesia pubescens (gabiroba)
AuePaisagismo: Este interesse nas plantas nativas do cerrado já é demonstrado por outros profissionais da área, não é? Quer nos relatar sobre os envolvidos nesta tendência?
A partir da última década, é possível constatar um movimento em torno da criação de uma nova e histórica vertente no paisagismo brasileiro centrada na flora do Cerrado. Esse movimento espontâneo e crescente de paisagistas busca a criação de uma linguagem paisagística com a identidade do Cerrado, a valorização de sua flora como componente ornamental e a inserção das espécies desse bioma na cadeia produtiva do paisagismo, especialmente as do estrato arbustivo e herbáceo.
Cito, como exemplo, o trabalho pioneiro da arquiteta paisagista Mariana Siqueira, idealizadora do projeto Jardins de Cerrado que, desde 2015, visa criar expressões paisagísticas para as savanas e campos do Brasil Central através da introdução de sua flora rasteira em jardins urbanos. Outras iniciativas de valorização da flora rasteira do Cerrado são o Cerrado Infinito, em São Paulo, e o Restaura Cerrado, no Distrito Federal. De forma convergente, o professor Júlio Pastore, desde 2010, estuda a relação sobre Paisagismo e Cerrado e atualmente coordena pesquisas na Universidade de Brasília relacionadas à prospecção e comportamento de espécies ornamentais da flora do Cerrado.
Ademais, diversos paisagistas e entusiastas vêm realizando projetos nessa área, como o fotógrafo Maurício Mercadante, que tem registrado belas imagens das espécies desse bioma. Um ponto de encontro desses profissionais tem sido um grupo virtual de rede social chamado Cerrado nos Jardins, desdobramento do projeto Jardins do Cerrado, no qual há constante troca de experiências e a organização coletiva de atividades práticas pontuais. A identificação de todas as iniciativas e profissionais que compõem esse movimento merece um estudo próprio para registro histórico, a meu ver.
O meu estudo buscou sistematizar uma parte do conhecimento gerado pelas experiências empíricas realizadas por parte dos paisagistas que fazem parte desse movimento: Bárbara Pacheco, fundadora da empresa VerdeNovo sementes nativas; Júlio Barea Pastore, professor adjunto da UnB; Kátia Cristina Matos, proprietária da empresa Nativa Paisagismo; Luiz Pedro de Melo Cesar, professor adjunto da UnB; Mariana Siqueira, idealizadora do projeto Jardins de Cerrado, Roberta Maria Costa Lima, docente ; Sérgio Rubens Borges, sócio da empresa Vertical Paisagismo e Jardinagem e William Pond , proprietário do escritório W.S. Pond arquitetura paisagística. Não fiz um estudo exaustivo sobre o tema (que merece ser aprofundado posteriormente), mas sim um retrato do conhecimento dinâmico e incremental gerado de forma empírica por este grupo.
Um dos principais resultados da minha pesquisa é a identificação de uma lista com 86 espécies da flora do Cerrado potencialmente ornamentais, de todos os estratos, generalistas, e indicadas para as mais diferentes condições. Como conclusão, observei que as estratégias necessárias para o uso ampliado da flora do Cerrado no paisagismo são: a difusão do conceito e engajamento da sociedade por meio da educação ambiental, comunicação e marketing; o investimento em pesquisa e conhecimento, especialmente em relação às condições edáficas, fitofisionômicas e climáticas para a seleção de espécies e tratos culturais adequados; a qualificação de equipes; e a realização de advocacy para a criação de políticas públicas para impulsionar o setor, incluindo fomento à pesquisa e investimento.
Dipluso don sp
AuePaisagismo: Uma mensagem para nossos leitores, em sua maioria profissionais de área de Paisagismo e Irrigação:
O planeta deu o alerta: não podemos seguir adiante adotando as mesmas práticas convencionais e cômodas, mas insustentáveis. Precisamos mudar, deixar a zona de conforto e buscar técnicas que respeitem e valorizem todos os seres que coabitam esse planeta. Podemos contribuir de forma direta para a reconexão das pessoas com o meio ambiente. A solução está na natureza.
Macaire a radula
Kielmey era coriacea (pau santo)
Viveiro de plantas do cerrado
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